Debates e reflexões a partir da Brazilian Caravan, parte do projeto Transnational Dialogues 2014 / Debates and reflexions from the Brazilian Caravan experience, part of the project Transnational Dialogues 2014 / Raphael Franco
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O século XX trouxe uma série de processos transformadores para a humanidade. A globalização (ou mundialização) aproximou os continentes, imprimindo na sociedade dinâmicas econômicas e políticas que, naturalmente, tiveram impacto nos âmbitos social e cultural. Alem do acesso a novos meios de produção e mercadorias, a globalização abriu caminho para maior acesso à informação e facilidade de fluxos transitórios. Com isto, processos de reflexão crítica também se tornaram mais freqüentes, através da inter-conexão entre diversos grupos, organizações, instituições e indivíduos.
Desde a primeira década do século XXI, a humanidade vem passando por um momento intenso no que diz respeito à identidade cultural e à participação da sociedade civil na construção das decisões políticas. Eventos e movimentos recentes como a “primavera árabe” “os indignados” e os “ocupa” resgataram processos de discussão sobre democracia e o papel do Estado como regulador e mantenedor da ordem vigente e do status quo. Um número expressivo de grupos independentes se formaram e se interconectaram através das redes sociais, trocando informações, metodologias, reflexões e projetos de ações globais como formas de questionar as dificuldades enfrentadas pela sociedade no momento atual do capitalismo.
No âmbito das artes, observamos o surgimento de diversos programas internacionais de incentivo à produção visual e teórica, desde residências a ações independentes e governamentais. Projetos como o Transnational Dialogues surgem como uma ferramenta de reflexão multi-geográfica, pluricultural e colaborativa, que fomenta a integração entre pesquisadores, artistas e produtores culturais do mundo todo. O programa promove uma análise critica da sociedade contemporânea em seus diversos níveis, trazendo referências de contextos multiplos, como o europeu, o asiático e, mais recentemente, o latino-americano. É importante ressaltar a progressiva ascensão de países como o Brasil, a China e a Rússia no cenário internacional, o que contribuiu para potências culturais já estabelecidas voltassem seu olhar para a produção contemporânea destes países emergentes. China e Brasil, mais especificamente, são dois dos países com maior efervescência cultural e relevância para o mercado da arte internacional, atualmente. Por este motivo, as discussões abertas ao longo do programa do Transnational Dialogues se fazem relevantes, uma vez que desenham uma linha de pesquisa entre a Europa, o Brasil e a China, levando em consideração as particularidades mercadológicas e histórico político de cada país.
Sendo o conceito de espaço um dos temas centrais dos debates em curso, este texto procura levantar algumas questões referentes ao espaço da favela. Subsequentemente, algumas linhas paralelas e divergentes serão brevemente traçadas e relacionadas ao contexto chinês, a partir da troca de informações com participantes da Brazilian Caravan, ocorrida no mês de fevereiro de 2014, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
O espaço na cidade informal
A cidade informal é uma forma de organização já bastante recorrente em grandes cidades do Brasil. Em cidades como São Paulo e o Rio de Janeiro, ela faz parte da característica e do imaginário popular dos habitantes e visitantes. Usualmente, as favelas encontram-se isoladas do centro urbano por barreiras geográficas ou socioeconômicas, funcionando de forma paralela à sociedade formal. Em São Paulo, por exemplo, estas se encontram nas periferias da cidade, a uma distância expressiva do centro. No Rio de Janeiro, o contexto é um pouco diferente. Devido a sua topografia, constituída por montanhas, morros e pelo mar nas faces Oeste, Sul e Norte, as favelas se desenvolveram em paralelo ao crescimento da cidade formal, dividindo espaços tão centrais quanto bairros como Copacabana, Santa Teresa, Barra da Tijuca, São Gonçalo, entre outros. A presença de morros em meio a bairros considerados mais nobres promove um processo de maior interação social, se comparado a São Paulo, por exemplo. Entretanto, contribui para a formação de uma tensão social e medo por parte das elites, que se queixam da criminalidade e da falta de segurança.
De todo modo, as favelas representam um fenômeno único de construção do espaço urbano. A começar pelo próprio estabelecimento da mesma, onde áreas são loteadas de forma irregular por especuladores que, por sua vez, comercializam ou alugam pequenos terrenos para família e indivíduos normalmente de baixa renda, algumas vezes migrantes recém-chegados de outros estados. Casas populares de autoconstrução são rapidamente erguidas, independentemente de qualquer legislação oficial e, por diversas vezes, encontram-se em áreas de risco, como encostas ou áreas de manancial, estando vulneráveis a desabamentos e enchentes. A infraestrutura básica (saneamento e energia) é muitas vezes inexistente ou estabelecida de modo irregular, pelos chamados “gatos” (ligações clandestinas).
Tal forma de concentração urbana constitui, ao longo das décadas, um exemplo bastante singular de tecido humano. Uma vez que a cidade informal é excluída da cidade formal, seus habitantes desenvolvem formas de se identificar e de gerenciar aquele espaço. A própria questão de seu uso é de extrema complexidade, uma vez que envolve problemáticas ligadas à criminalidade, à falta de políticas públicas e ao descaso das autoridades. Nos morros, geralmente as leis são formuladas e colocadas em prática pelo tráfico, que dita quem pode acessar aquele espaço, quando e como. Ou seja, é estabelecida uma espécie de legislação paralela à oficial, e cada favela possui suas particularidades e sistemas de funcionamento. A polícia, na grande maioria dos casos, é vista com medo por parte dos moradores, uma vez que, de forma imperativa e bastante agressiva, estabelece uma guerra civil cotidiana com o tráfico, invadindo comunidades e deixando mortos e feridos, muitas vezes inocentes. Ao que parece, quando se dialoga com habitantes das favelas, o tráfico impõe um modo de vida autoritário, mas que garante a harmonia cotidiana e gerenciamento do morro. A polícia, por sua vez, colabora com a violência do tráfico vendendo armas de forma ilegal e promovendo invasões regulares, onde não se sabe ao certo quem ou porque vai se ferir, quais são os criminosos e quais são os civis.
O espaço das favelas configura-se assim como sendo de extrema complexidade, mas com um caráter visceral pulsante. As leis que o regem imprimem um ritmo e uma dimensão ao espaço arquitetônico da comunidade, onde seus acessos e permissões dependem de uma série de fatores, independentes das leis formais. Desta forma, quem habita a cidade informal possui o privilégio de acessar livremente aquele espaço, feitos os devidos acordos com aqueles que tecem as políticas de conduta no mesmo. Pessoas que habitam fora da comunidade dependem de uma espécie de “aval humano” para ultrapassar os grandes muros e portões invisíveis que protegem e fortificam esse complexo de construções. As relações humanas funcionam como as chaves simbólicas que abrem as portas para os visitantes do morro, ou seja, é necessário conhecer e estar com algum morador ou frequentador já conhecido para obter permissão de acesso. Depois de obtido esse aval, a cidade informal se apresenta como um ambiente agradável e cheio de vida, apesar do cotidiano de violência e exclusão. Tal fenômeno caracteriza esse tipo de organização urbana com grande força conceitual no que diz respeito aos conceitos de espaço público e espaço privado, à autoconstrução e autogestão e à construção de um cotidiano independente daquele formalizado e institucionalizado, mas que se relaciona com este em uma trama de interconexões sociais, políticas e econômicas.
Para os debates desenvolvidos durante o Transnational Dialogues, essa discussão se mostra relevante, uma vez que permeia assuntos como a economia formal e informal dentro do capitalismo contemporâneo, a formulação, estruturação e gestão de espaços independentes e os processos de usos e de reivindicação do espaço público.
Pensando na proposta desse projeto de relacionar os contextos da Europa, Rússia, China e, mais recentemente, Brasil, as visitas realizadas durante a Caravana Brasileira, aliadas às discussões coletivas promovidas, contribuem para o estabelecimento de alguns paralelos conceituais. No caso do acesso e uso do espaço, bem como dos conceitos de espaço público e privado, o contexto chinês se mostra bastante diverso do brasileiro.
O contexto chinês
A China ocupa atualmente o posto de segunda maior economia do mundo e é conhecida como a “grande fábrica” de bens de consumo há décadas. Devido a sua complexa estrutura política e econômica, o país vem se abrindo e ingressando de forma competitiva no mercado internacional. Por um lado o governo chinês fomenta a produção e o desenvolvimento da indústria, por outro trabalha com fortes regulamentações do capital interno.
Nas últimas décadas, a China vem se destacando no cenário cultural internacional, com grande relevância para o contexto da arte contemporânea. Artistas como Ai Wei Wei, Chen Xiaoyun, Yu Hong, Xu Bing, entre tantos outros, são destaques dessa produção recente tão proeminente, participando de mostras como a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel, além de diversas exposições e feiras internacionais de arte.
Essa forte participação no mercado industrial e cultural, aliada ao duro regime político, fazem da China um país bastante complexo e intrigante do ponto de vista das análises criticas propostas pela produção e pela crítica de arte. Por um lado, há um processo de abertura e miscigenação cultural que ocorre já há algumas décadas, por outro, a sociedade se vê muitas vezes engessada em um regime político impositivo e restritivo, no qual os cidadãos encontram restrições de teor discursivo e de poder de ação.
No que diz respeito às reflexões aqui propostas sobre o espaço, o contexto chinês aparece como uma configuração repleta de incertezas, mistérios e diferenças culturais, sociais e políticas. Até onde se sabe, na China o Estado é soberano, detendo todos os poderes sobre o espaço, seja público ou privado. As tradições culturais também têm um peso grande no cotidiano da sociedade chinesa, o que garante a manutenção de costumes milenares, mas por outro lado, implica na dificuldade em romper com padrões pré-estabelecidos. Os conceitos de espaço público e privado não se aplicam na prática. Se por um lado, no Brasil, encontramos um contexto onde o Estado opera na cidade formal e é omisso na cidade informal – contribuindo, assim, para a formação de uma “para-sociedade” –, por outro, na China o estado é onipotente, o que não impede que lá existam espaços negligenciados ou à margem da sociedade.
As dimensões deste controle se estendem a um grau de complexidade que transcende o próprio espaço tangível. O uso do espaço virtual também é vigiado e, muitas vezes controlado pelo governo. Em 2011, o artista Ai Weiwei ficou preso por quase 3 meses, sob acusações do governo a respeito de suas transações financeiras. Entretanto, especula-se que Weiwei foi detido devido a suas declarações e trabalho poético que incentivam a democracia e que o governo chinês temia que o artista levasse a ideologia libertária que inspirou a primavera árabe para a China. Em decorrência disto, o estado chinês promoveu uma série de censuras no espaço virtual da Internet, retirando websites, blogs e páginas do ar e cerceando o direito à liberdade de expressão de diversos cidadãos.
Esse processo autoritário trouxe à tona novamente a discussão sobre a liberdade civil individual no país, tanto no nível nacional quanto no internacional. Um dos aspectos expostos foi a contradição chinesa como grande potência econômica, conhecida como “a fábrica do mundo”, dotada de um estado opressor. O regime político chinês permite uma maior articulação mercadológica, abrindo espaço para o capital privado interno e externo, desde que regulamentado pelo estado. Entretanto, coíbe movimentos intelectuais e culturais que apontem questões no funcionamento da sociedade. Um outro exemplo desta questão é a dificuldade em se estabelecer espaços independentes de criação e troca, mesmo que nas grandes cidades chinesas. A idéia que se tem (e que alguns chineses defendem) é que todo e qualquer tipo de espaço pertence ao Estado, não havendo a possibilidade de reivindicação de usos de espaço público, liberdade no espaço privado, ou articulação entre movimentos sociais.
De todo modo, tal cenário, embora desafiador, implica em uma riqueza e vigor por parte de seus artistas e pensadores. A produção em arte contemporânea chinesa apresenta trabalhos provocativos, desconcertantes e repletos de subversões simbólicas. Assim como o cotidiano difícil nas favelas nutre a pesquisa e o desenvolvimento de projetos socioculturais bastante ricos, o cenário chinês traz dentro de suas contradições o alicerce para o desenvolvimento de expressões culturais ímpares, que injetam frescor nas trocas de informação contemporâneas a respeito de arte, mercado, liberdade, democracia e o papel do estado.
Raphael Franco is a visual artist and educator. He has taken part in the First Caravan of Transnational Dialogues 2014.
(Image on top: “Ciclolinha: Explorando Ortogonais”, 2014, Raphael Franco)