Não existe o pós-colonial

by Monstra Errátika

Escrevi esse textinho na madrugada de hoje, voltando de Viena.

Já passa das 03 da manhã. Eu estou num ônibus que saiu de Viena às 21h em direção a Berlim e não consigo pensar em outra coisa que não seja o racismo europeu.

Performance "The Colonial Wound Still Hurts" by Jota Mombaça, Venice, 11 October 2015
Performance “The Colonial Wound Still Hurts” by Jota Mombaça, Venice, 11 October 2015

Hoje na conversa com o coletivo de curadoras da exposição “Wer hat Angst vor der Museum?”, uma funcionária do Weltmuseum (antigo Museu de Etnologia), ao tomar para si a fala, conseguiu, em poucos minutos, concentrar vários dos jargões racistas que caracterizam essa merda de racionalidade supremacista branca que está no cerne do pensamento eurocêntrico. Ela acusou a exposição de produzir “racismo contra os brancos”, e de ameaçar a paz entre os povos, dado o caráter radical das obras expostas, bem como dos textos produzidos por artistas e curadoras; reafirmou a importância de trabalhar pelo respeito mútuo entre os diferentes povos, e associou a essa missão o trabalho do museu na “preservação da memória de culturas mortas” – para ela, roubar itens considerados sagrados por povos do mundo depois de assassiná-los é uma forma de “preservação” diante da qual deveríamos supostamente estar agradecidas; incentivou a realização de “exposições não-políticas” que exibissem e celebrassem a diversidade; e, ainda por cima, teve a ousadia de negar que acervos como o daquele museu de etnologia (bem como as construções suntuosas que lhes servem de abrigo) só se tornaram possíveis graças à exploração colonial. Enquanto ela falava, todas olhávamos umas para as outras, ao mesmo tempo passadas com a cara de pau da moça branca e decididas a responder aquela agressão tão gratuita quanto desconectada com o contexto em que estávamos. Era uma sala majoritariamente ocupada por corpos das margens do mundo (corpos negros, corpos trans, corpos sudacas), com uma parede onde se lia “Racistas, no pasarán”. Mesmo afetadíssimas com o discurso da funcionária do museu, num consenso silencioso deixamos que ela falasse. De fato, ficamos até um pouco agradecidas pelo fato daquela pessoa, num mundo controlado pela etiqueta do politicamete correto, deixar escapar toda essa merda que, sabemos, corre pelas cabecinhas saturadas de privilégio de muitos europeus. Por pior que possa ter sido ouvir essas coisas, o que aconteceu não deixou de ter uma função pedagógica: a de me lembrar que, sob o asfalto bem cuidado do chão em que agora piso, jazem séculos de exploração, dominação e apagamento de gente como eu. Quando a branca finalmente calou a boca, uma das mulheres negras poderosas que estava presente tomou a fala e disse tudo o que, até então, só as trocas de olhares entre nós presentes havia dito: que o que estava sendo chamado ali de “racismo contra os brancos” era nada mais que a responsabilização das pessoas brancas pelas feridas coloniais geradas em nossos corpos racializados e geopoliticamente marginais, e que esse era um problema dela como branca e não nosso; que já nos recusávamos a ser objeto do olhar supremacista branco; e, diante da réplica da funcionária do museu acerca do que fazer (com o acervo do museu, que parecia no final das contas ser a coisa à qual ela dava mais valor ali naquela sala): que não mais daríamos nosso conhecimento de mão beijada para gente como ela, que historicamente nos roubou tudo (nosso saberes ancestrais, nosso direito à terra, à memória, à autoidentificação, a decidir sobre nossos próprios corpos e práticas, nossa autonomia…), e que ela achasse as respostas pra suas próprias perguntas sem encher o nosso saco. Depois dessa resposta, encerramos o debate com uma maré de aplausos que durou quase tanto tempo quanto o tomado pela fala da funcionária do museu. Saímos de lá ainda mais fortes do que entramos e ainda deu pra acompanhar o final da performance-ritual da Katia Tirado em memória dos 43 estudantes assassinados em Ayotzinapa.

Enquanto escrevia esse texto, o ônibus parou na fronteira e dois policiais brancos entraram a conferir nossos passaportes. Quando chegou minha vez, o policial levou o dobro do tempo gasto com os demais passageiros (todos brancos). Em cada um dos dias que passei aqui até agora, pelo menos uma pessoa branca na rua me tratou como se eu representasse uma ameaça. Conversando com uma amiga brasileira na estação de metrô ontem, ela me contou o caso de uma pessoa negra europeia que, ao ser abordada pela polícia uma vez, ouviu com todas as letras do policial branco: come back to your plantation. Noto que o velho mundo não conseguiu se livrar de suas fantasias de escravidão e domínio, embora pareça querer forjar para si uma imagem nova de mundo multicutural, acessível e supostamente inclusivo. A colonização não é um assunto do passado. É um processo que nunca cessou e que agora tem novas formas.

Não existe o pós-colonial.

*Na imagem, um dos trabalhos mais fortes da mostra: Sandra Monterroso, 2014. La devolución del penacho de Vucub Caquix / The devolution of Vucub Caquix penacho. Excerto: https://vimeo.com/113163564

27 September 2015