Afrofuturismo

Texto escrito por Azu Nwagbogu para a exposição Foam X African Artists' Foundation, 19 de maio - 16 de julho de 2017, Foam Fotografiemuseum Amsterdam. The text is also available in English!

“Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer.”
Gênesis, capítulo 11, versículo 6

Quando foi a última vez que você viu um protagonista africano, uma pessoa negra em uma narrativa de ficção cujo caráter é aprimorado e inspirador? Talvez em uma história em quadrinhos, ou como James Bond, em uma série de TV conhecida, com certeza alguma coisa no cinema? Enquanto você faz essa busca, apresento aqui três jovens líderes globais africanos que rompem com essa narrativa. Mũchiri Njenga, Kadara Enyeasi e Osborne Macharia estão reformulando nossa realidade contemporânea através de narrativas ficcionais utilizando meios que se valem de lentes.

Kichwateli from Studio Ang on Vimeo.

Em seu curta Kichwateli (2011) (termo em suaíli para “cabeça de televisão”), Njenga inspirou-se no trabalho de Octavia Butler, autora afro-americana de ficção científica. Ele também se valeu de realizações africanas documentadas parcamente nos campos da biotecnologia, astronomia e literatura. O protagonista, um garoto com uma caixa de televisão elegantemente incorporada à sua cabeça, é um oráculo vindo do futuro para preparar as mentes das pessoas para a nova época vindoura. Ele percorre as ruas precárias de Nairobi transmitindo informações através do aparelho que se funde com sua cabeça.

Situado em vários tempos e espaços paralelos, o curta faz especulações sobre o papel da tradição e da espiritualidade em uma África futurista. Que função o berço da humanidade – a África – desempenharia nisso que se prevê ser o próximo e gigantesco passo do avanço tecnológico, o transumanismo? A crença forte entre os transumanistas é de que vamos evoluir para nos tornar seres diferentes com capacidades expandidas de tal forma em relação à condição natural, que passam a merecer o rótulo de pós-humano. Isso pode parecer meio absurdo hoje em dia, mas não mais do que outrora pareceram quaisquer dos avanços tecnológicos dos quais desfrutamos atualmente.

Kipipiri 4, 2016 © Osborne Macharia

Osborne Macharia também abraçou esse afrofuturismo com um zelo religioso, sendo capaz de travar conversas de horas sobre cada um de seus personagens de ficção. Suas imagens surrealistas maiores que a vida são invocadas diretamente de sua imaginação. Seus retratos para Kipipiri 4 (2016) contam a história fictícia das quatro esposas dos generais que lideraram a revolta de Mau Mau no que então era o Quênia britânico. Essas mulheres desempenharam papéis essenciais na luta para esconder alimentos ou informações nos colossais e simbólicos penteados que faziam em suas próprias cabeças quando a lua cheia se aproximava. Para Macicio (2015), ele fotografou homens usando dispositivos oculares que supostamente foram usados nessa mesma revolta para conseguir ver os inimigos durante a noite.

Como se pode imaginar, o ateliê de Macharia parece um cenário de filme, com seu stylist, Kevo Abraham, orientando os trabalhos enquanto ele sonha acordado no canto. Macharia colabora com modelos que são negligenciados ou rejeitados socialmente. Trata-se de um amálgama de jovens, velhos, altos e nem tão altos assim, albinos e outros, todos eles no set e conversando entre si. Acabaram se tornando seus amigos e companheiros. Uma das grandes motivações para essa série foi a insatisfação de Macharia com as normas aceitas em videoclipes e editoriais de moda. Ele quer “provar que qualquer um pode ser bonito e que todos nós temos poder e influência, não importa a sua idade ou de onde você venha”.

A cuidadosa curadoria (digital) de uma realidade alternativa também é uma preocupação primeira para Kadara Enyeasi. Formado originalmente como arquiteto, ele mistura ideias da arquitetura moderna a suas séries de colagens digitais. Fortemente inspirado no mestre franco-suíço Le Corbusier, ele adapta ferramentas criadas pelo mentor modernista como apoios visuais para orquestrar um universo fantástico. Seus sujeitos masculinos se torcem e brincam, adotando formas esculturais. Ao fotografar somente corpos negros masculinos, ele cria um diálogo que desafia as leis contra os gays na sua Nigéria natal, combinando a estética afrofuturista com uma inclinação por tradições indígenas, como é o caso do Arodan. Trata-se de um fenômeno iorubá em que o sujeito (normalmente uma criança) é distraída (normalmente pelos pais) com incumbências irreais e inatingíveis. No trabalho de Enyeasi, essa tradição se torna uma espécie de metáfora do afrofuturismo – mais do que no destino, a essência da jornada está na jornada. Em Scenario I: Afther the L’Ouverture [Cenário 1: Depois de L’Ouverture], o olhar do espectador é constantemente distraído e desviado por referências a várias tradições culturais que parecem ser irreconciliáveis. As criações de Enyeasi são emblemáticas de sua geração, que se recusa a ser categorizada com rótulos simplistas. Ele funde a dialética africana a ideias da arte moderna e contemporânea do ocidente para se apropriar de tudo isso.

WO EYIN WO (Watch Your Back), 2016 © Kadara Enyeasi

O que inspira a ansiedade e o fascínio simultâneo desses artistas com o futuro, e por que o afrofuturismo capturou a imaginação de vários jovens fotógrafos que trabalham na e sobre a África? É muito simples: a insatisfação com a realidade atual. O futuro chegou e não condiz com sua promessa. Lamentamos aquele passado em que ansiávamos pelo futuro. O capitalismo implacável, mudanças climáticas, terrorismo e custos cada vez mais altos induzem à redução de expectativas para a próxima geração. Talvez, pela primeira vez na história mundial recente, a geração vindoura não poderá contar com tantas opções ambientais e materiais quanto seus antecessores. Somos inundados por fatos, mas não temos a verdade – aquela de cunho emocional – que existe apenas na sentimentalidade e na ficção. Há várias maneiras de contar uma história, assim como também há várias maneiras de ofuscar a verdade e mentir a respeito dela. No entanto, não há como mentir sobre o futuro – ele ainda não aconteceu e, portanto, não podemos provar o contrário.

Macicio, 2015 © Osborne Macharia

Se o talento criativo africano pode mudar a visão do continente, temos que abraçar as mesmas ferramentas que eram usadas para perpetuar a narrativa falsa e preponderante. Filme, fotografia, literatura e música têm poder de expressão através da arte contemporânea, e essa exposição na Foam é uma manifestação sinestésica dessas capacidades. A fotografia e a tecnologia digital se uniram para dar ao mundo uma nova linguagem universal que não é obscura, e sim entendida a cada tribo, a cada região, da África à Ásia, com as mídias sociais desempenhando um papel fundamental para catalisar esse aspecto da alfabetização visual. Especialmente nas comunicações, nossas realizações ao longo do último século desafiam a lógica que prevalecia antes, e agora a humanidade pode finalmente se unir sob a mesma linguagem global. Se devemos acreditar nas escrituras, essa foi a única coisa que conteve o homem, podemos finalmente construir a metafórica torre que leva aos céus. A linguagem de zeros e uns que constitui a computação básica permitiu que tanto cientistas quanto artistas imaginassem um futuro em que o homem fosse capaz de criar seu próprio deus ou, então, ele se aprimora de maneira tão poderosa que passa a se sentir, ele próprio, um deus. Contudo, a persistente veneração (católica) da brancura que, há muito, dominava a cultura visual, está agora experimentando uma emulação mais obscura e desassossegada no afrofuturismo. A que todos nós devemos ser fiéis.

Texto traduzido do inglês por Daniel Lühmann

[Imagem de capa: From the making of Kichwateli, 2011 © Studio Ang – http://studioang.tv/enkang/the-making-of-kichwateli/]