Acervo da Laje. Trabalhando com a memória

José Eduardo Ferreira Santos é pedagogo (UCSAL), mestre em Psicologia (UFBA), doutor em Saúde Pública (UFBA), pós – doutor em Cultura Contemporânea (PACC – UFRJ), curador do Acervo da Laje. Luigi Galimberti é editor do site transnationaldialogues.eu.

Luigi Galimberti: O que é o Acervo da Laje?

José Eduardo Ferreira Santos: O Acervo da Laje é um espaço de memória estética e artística das periferias de Salvador, na Bahia. Funciona em duas casas no bairro do São João do Cabrito, Plataforma, área caracterizada durante muito tempo como perigosa por conta da pobreza e da violência.

Para entender o que é o Acervo da Laje é preciso primeiro entender que no Brasil os espaços museais, de memória e artísticos ficam localizados sempre nos centros das cidades, sendo que a maioria da população dessas cidades habitam as periferias e nesses territórios não há museus e espaços de memória e de arte, pois historicamente a memória desses territórios foi apagada da história do país, predominando sempre narrativas hegemônicas, que excluíram, por exemplo, as histórias dos povos que habitam as periferias, negando-lhes, inclusive a visibilidade de seus trabalhos artísticos, pois muitos artistas das periferias passam a vida produzindo arte e não são reconhecidos nem visibilizados em vida.

José Eduardo Ferreira Santos, curador do Acervo da Laje.

A partir da sugestão de um professor de Sociologia, Gey Espinheira, e depois de uma pesquisa com o fotógrafo Marco Illuminati, em 2011 Vilma Santos e eu começamos a comprar as obras dos artistas e expô-las na laje da nossa casa para que as pessoas conhecessem a arte produzida na periferia: esculturas em madeira e alumínio, quadros, mosaicos, e em pouco tempo já estávamos com uma grande coleção de obras de arte e artefatos históricos que remontam desde a pré–história do território, dos nossos índios que foram exterminados, dos nossos antepassados negros e negras que foram escravizados e refizeram suas vidas aqui nos territórios das periferias, em quilombos e nos terreiros de candomblés, passando por coleções de fragmentos de porcelanas inglesas, azulejos portugueses, instrumentos de suplício, tijolos das antigas olarias da ferrovia inaugurada em 1860 pelos ingleses, tudo isso em sua materialidade.

O Acervo da Laje é uma experiência que une a vida, a arte e a resistência que a periferia sempre soube exercer através das formas mais criativas de existir dentro das situações de adversidade.

Assim, há, de forma democrática, uma encruzilhada de narrativas que se encontram no tempo e no espaço, provocando sempre novas descobertas e releituras do território periférico como espaço de potencialidades, histórias, memórias e elementos que compõem a história humana às quais as periferias também pertencem de modo irreversível, por conta do poder da arte da memória e da cultura.

Sim, porque a cultura popular em nada deve à cultura acadêmica ou canônica.

 

Luigi: De quem é a história que você está preservando e para quem você está dizendo?

José Eduardo: O Brasil sofre com a falta de memória. Ou com a dor da perda da memória. E essa talvez seja uma das nossas raízes mais violentas e dispersivas. Não é à toa que perdemos recentemente o quinto maior acervo do mundo, com o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Por conta da incúria, perdemos narrativas ancestrais.

Em relação às periferias essas memórias são invisibilizadas constantemente e aquilo que procuramos fazer nas ações do Acervo da Laje, que é Casa, Museu e Escola, é trazê-las à tona através de seus fragmentos, suas obras, poéticas e promover o encontro com a população não só da periferia, mas em geral.

E esse trabalho é feito através do tripé pesquisa, ensino e exposição, ou seja, acreditamos na ideia do museu vivo, da experiência vivenciada em ambientes considerados até então impossíveis de existir.

Por pesquisa entendemos a dimensão da busca incansável pelo nosso fratrimônio, pois não é feito só pelo patrimônio, mas pela existência dos nossos irmãos e irmãs que nos antecederam no território e do labor artístico, estético e de suas elaborações humanas.

Assim é importante buscar, encontrar e reconhecer os artistas e suas poéticas, seus modos de existir e trazer para a periferia as suas obras para que possam dialogar com a cidade, mas partindo sempre do seu território de origem, pois isso, o museu provoca a palavra peregrinação, ou seja, a busca de algo que excede a experiência cotidiana e nesse sentido o religioso e o mistério encontram na arte e sua dimensão excedente.

Esse fratrimônio é tão fundador como o patrimônio, pois foi feito pelos nossos irmãos e irmãs que nos precederam.

As ações de pesquisa se dão em saídas a campo, buscas pelas praias, bairros, lixos, assim como visita aos ateliês, brechós e inclusive compras das obras em leilões em outros estados.

As atividades de ensino se constituem em propor constantemente o encontro de crianças, adolescentes jovens, adultos, idosos e famílias com artistas e portadores de notórios saberes com suas artes, provocando a interação e a aprendizagem, não deixando que esses saberes sucumbam diante da efemeridade da vida.

E neste sentido a presença de Vilma Santos e Leandro Souza, ela na parte educativa do Acervo e ele na produção de Projetos como o Ocupa Lajes, já em sua segunda edição, financiados via edital público pela Fundação Gregório de Mattos / Prefeitura Municipal de Salvador na primeira edição e a segunda pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia., mostram a força de uma pedagogia do encontro entre a arte e as pessoas ocupando diversos espaços antes impensáveis na cidade.

A estrutura do Acervo da Laje foi pensada e utilizada como espaço educativo e pedagógico que se revela como encruzilhada de encontros, todos mediados pelas artes, memórias e estéticas.

A exposição diz respeito ao fato de que uma das tarefas principais do Acervo da Laje é expor as obras, artefatos históricos e provocar encontros e deslocamentos estéticos da memória, como possibilidade de diálogos e novas revelações sobre os moradores e o território.

Enquanto na Casa 1 a exposição é interna, ocupando corredores e salas, na Casa 2 ela é interna e externa, pois busca envolver as pessoas através de diálogos estéticos e artísticos em todos os ambientes, desde a entrada até a suas dependências, escadas, portas, todo o ambiente.

Uma das paredes internas da Casa 1 do Acervo da Laje com obras dos artistas da periferia. São João do Cabrito, Plataforma, Salvador, Bahia. Foto: José Eduardo Ferreira Santos.

Acreditamos que o trabalho com a memória em sua materialidade em territórios caracterizados pela vulnerabilidade pode reconstruir laços, significados e pertenças.

Olhamos para a memória com esperança e não como um aspecto engessado, pois ela se dinamiza no encontro com as pessoas e isso vai gerando novas narrativas, antes encobertas pela hegemonia das grandes e estabelecidas narrativas que dominam o Brasil.

Cada tijolo, cerâmica, artefato, obra de arte que está no Acervo é o encontro com a memória perto de nós, aquela que pode ser experienciada como vida que se renova, assim como os artistas que a compõem, só para lembrar o aspecto da cerâmica e azulejos que de artistas que estão nas Casas 1 e 2: Reinaldo Eckenberger, Cláudio Pastro e Prentice Carvalho; três artistas que tocaram o mistério, cada qual à sua forma, dois deles já na eternidade e Prentice ainda caminhando conosco, mas já sabendo que seu destino é ser eterno e que essa eternidade passa pelo encontro com suas obras nas paredes, salas, escadas, balcões, cada espaço que pode ser ocupado com arte, quebrando as fronteiras do “não toque” ou do “não era possível”.

Casa 2 do Acervo da Laje projetada por Federico Calabrese e construída com nossos recursos em 2015. São João do Cabrito, Plataforma, Salvador, Bahia. Foto: José Eduardo Ferreira Santos.

E assim suas narrativas refulgem, encontram as novas narrativas e a memória mais uma vez se reconstrói como existência plural e no mundo, pertencente à história humana; não mais como fraqueza, mas como riqueza.

Assim como a conquiologia do Acervo da Laje, coletada e composta por mim, meu querido e eterno pai, José Silva Santos, Vilma Santos, minha companheira e todas as crianças, jovens, adultos e pessoas amigas que contribuíram com seu trabalho para coletar e doar ao Acervo como gesto de cuidado com o mundo, o nosso mundo e o mundo de milhares de pessoas que por lá passam, pois o gesto de doar a obra ao Acervo gera novos modos de significação de participação em ações que agora veem a periferia como lugar das narrativas estéticas e das poéticas, como antes não era possível ver e conferir in loco e pelas redes sociais.

O Acervo da Laje, como costuma definir Leandro Souza, nasce da exclusão, pois se cada bairro da cidade tivesse um espaço de memória não precisaríamos ter somente os museus nos centros da cidade que não dialogam com as periferias, pois muitos destes acervos não dialogam com a maioria da população. Isso sem contar que acessá-los é passar muitas vezes por constrangimentos típicos da não integração, interação, contato e sempre com uma vigilância que impede a fruição e experiência de pertença àquele acervo que cada vez mais se distancia de nós e também pela concepção subjacente de quem frequenta museus são públicos específicos, nos quais a população periférica não se “enquadra” , por conta do racismo institucional e seletivo que ainda anda em voga no Brasil e dita e seleciona de modo sub-reptício quem deve frequentar tais espaços.

Por isso o Acervo da Laje permite o contato, a interação, o contato com as obras, o manuseio, o risco de quebrar uma peça ou não, pois como disse um amigo nosso “educar é um risco” e essa educação deve ser aquela que permite a interação, pois sem ela o conhecimento fica restrito aos impedimentos. Por esse motivo um museu popular, como o Acervo da Laje, assume esse risco de educar e tem uma grande reserva técnica que permite essa concepção de assumir o risco de educar sem restrições, pois como o Brasil tem uma origem autoritária, escravagista e elitista esse padrão se constitui como uma prática recorrente nesses espaços.

E ainda em relação ao pagamento as pessoas que veem de outros Estados ou países doam ou colaboram como podem. Moradores das periferias, alunos de escolas públicas ou universidades que estão tendo acesso muitas vezes às suas primeiras experiências museais são isentos dessa lógica porque eles e elas precisam fazer a experiência de pertença ao que lhes foi negado historicamente: fazer parte da história, fruir arte, encontrar suas narrativas ancestrais para que se posicionem politicamente de modo mais crítico e engajado, para que não sejam reduzidos a estigmas. Neste sentido o encontro com a arte e a memória no Subúrbio tem uma força que muitas vezes os museus do centro da cidade, pois nós não nos reconhecemos naquelas arquiteturas coloniais e colonialistas. Precisamos nos reconhecer também nos nossos espaços de vivência com a mesma potência para que cresçamos em diversidade e fortalecimento das nossas narrativas que foram apagadas e agora ressurgem em espaços como o Acervo da Laje.

Acrescento que o Acervo da Laje nasce da invisibilidade e da exclusão, pois hegemonicamente as narrativas periféricas são geralmente contadas por outrem e nesse sentido as ações do Acervo da Laje, em especial as do último ano com os Bate papos na Laje trouxeram à tona através de mesas e debates potentes as vozes das mulheres negras, população LGBTQI+, arte na periferia e o valor da obra de arte dos artistas da periferia em quatro ações a saber, neste ano de 2018:

  • (21 de abril): “Narrativas Negras – A visibilidade da mulher negra nas artes e na cultura baiana”, com Renata Dias, Ivana Magalhães e Vilma Soares, Aislane Nobre e Tina Melo, Joana Flores, com mediação de Milena Anjos.
  • (26 de maio): “Corpo manifesto: a diversidade sexual nas artes e na cultura baiana”, com Scher Marie, Marron Paulillo, Annie Ganzala, Matheus Paulillo e Tuka Perez, com mediação de Genilson Coutinho.
  • (16 de Junho, edição extraordinária): “Pirraças Urbanas – Arte Política nas ruas de Salvador”, com Àlex Ìgbó, Talitha Andrade, Yuri Tripodi, com mediação de José Eduardo Ferreira Santos.
  • (7 de Julho): “Pague minha arte: o mercado das artes visuais em Salvador”, com Àlex Ìgbó, Harlei Eduardo , Luiz Pablo Moura, Eder Muniz e Raimundo Bida, com mediação de Mariana de Paula.

Esses bate papos conseguiram reunir e promover a revelação de narrativas diversas, periféricas, isto é, não centrais e caracterizadas pela força da persistência e da reinvenção no cotidiano, mostrando as dinâmicas da produção de estéticas que estão aí a mostrar que a resistência existe e que é possível conviver na diversidade.

Acervo da Laje. Foto: José Eduardo Ferreira Santos

E por ser casa, museu e escola aberta às diversidades cada narrativa trouxe sua poética, seu modo de existir…

E nesse sentido estamos dialogando com a cidade e o mundo, pois o Acervo da Laje recebe milhares de visitas que estão começando a entender a importância da arte e da memória na constituição da civilização brasileira, negra, indígena, periférica e não colonialista.

 

Luigi: Quais são os limites de ação do museu, particularmente como motor de mudança política e social?

José Eduardo: O nosso trabalho como museu é um trabalho seminal; é uma primeira experiência, das poucas que existem no Brasil. Por isso diante do constante fluxo de visitas e atividades desenvolvidas estamos formando uma população que começa a sair da dimensão assistencialista e começa a se tornar protagonista de sua história e de suas narrativas, pois o museu é, também um espaço de poder, de diálogo, de educação e de reconhecimento de si na história. Trabalhar com a memória nos fortalece para enfrentar o aqui e agora, mas também nos projeta para um futuro mais crítico e proativo. E nesse sentido é preciso lembrar que esse trabalho é feito por mim, Vilma Santos, a primeira mulher negra a fundar um museu na periferia e a Leandro Souza, produtor cultural e morador da periferia. Se com três pessoas podemos mobilizar milhares de pessoas a partir do Acervo imaginemos o que não poderíamos fazer quando começarmos a nos estruturar de forma mais consistente? Pois se já jazemos o que fazemos sem dinheiro ou com poucos recursos acreditamos que a tendência é sempre mais se fortalecer à medida em que vamos nos estruturando e formando uma equipe de trabalho que dê conta da diversidade de atividades que compõem o Acervo da Laje.

Quanto mais nos fortalecemos mais as comunidades se fortalecem, pois começam a perceber que é possível mudar a história e ser resistência.

 

Luigi: O que você achou quando viu as imagens do Museu Nacional do Rio de Janeiro queimando em chamas?

José Eduardo: Como brasileiro em um primeiro momento chorei bastante, mas depois me lembrei que levar adiante as ações do Acervo da Laje é um ato de resistência e de reconstruir o mosaico simbólico das nossas memórias e aí começou um fluxo mais incessante ainda de pessoas de todas as partes vindo visitar o Acervo porque, por incrível que pareça, muita gente não sabia da existência do Museu Nacional e a comoção nas redes sociais durou menos de uma semana, o que mostra que a memória é ainda um componente que precisa ser estimulado nas escolas, nas universidades, na vida cotidiana do povo brasileiro e que as instituições que cuidam das nossas memórias sejam mais valorizadas, pois as verbas destinadas aos museus são ínfimas diante da grandiosidade do que esses acervos preservam.

Incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2 de setembro de 2018. Foto: Felipe Milanez.